domingo, 2 de março de 2014

Ceia do Senhor: banquete ou aperitivo?

Ceia do Senhor: banquete ou aperitivo?

É curioso o fato de o Senhor Jesus não ter deixado nenhum estatuto de natureza doutrinária, administrativa ou litúrgica a seus discípulos, de ter falado muito pouco da Igreja nos Evangelhos mas, no entanto, ter deixado duas ordenanças a serem observadas pela Igreja: o batismo e a Ceia – o que nos mostra a importância destes atos proféticos para Deus: o batismo é a iniciação de nossa fé, e a Ceia é a confirmação da mesma ao longo de nossa caminhada cristã.
É unânime o entendimento da importância e do significado da Ceia na Igreja como um memorial ao sacrifício vicário de Cristo a nosso favor. Entretanto, recentemente, um diálogo tem sido encorajado entre os irmãos no tocante a três aspectos da Ceia do Senhor: o formato, o espírito e o propósito em que ela é celebrada.
Assim como outros irmãos, particularmente entendo que milênios de tradição eclesiástica alteraram o entendimento destes aspectos e o modus operandi da Igreja quanto à Ceia. Esta série de artigos visa dar a minha contribuição neste diálogo. O título e alguns termos que usarei ao longo destes artigos podem soar um pouco provocadores, mas esclareço que minha intenção não é ridicularizar, nem mesmo mudar aquilo que milhões de irmãos praticam por todo o mundo. O propósito é fazer-nos refletir sobre algumas tradições que herdamos de nossos pais na fé e esclarecer certas práticas e entendimentos diferentes que estão emergindo em nossa geração no tocante a esta importante ordenança.

A prática dos primeiros cristãos

Era comum entre os primeiros cristãos observar a Ceia em um formato de celebração, ou seja, como uma refeição literal. Além de [1] observar um memorial ao sacrifício vicário de Cristo a nosso favor, a Ceia também tinha o propósito de [2] criar um ambiente de comunhão e fraternidade entre os irmãos (2 Ped. 2:13, Jd 12) e [3] prestar solidariedade e ajuda aos irmãos mais pobres da Igreja (1 Cor. 11:17-34).
A Igreja primitiva era uma rede de cristãos que se reuniam de casa em casa para juntos adorarem o Senhor Jesus. A mesa da comunhão era o epicentro desta celebração. O “partir o pão” (Atos 2:46) era um elemento tão importante desta celebração quanto os salmos, orações e a meditação das Escrituras que hoje tanto prezamos. A Ceia era uma celebração que fazia parte do cotidiano dos discípulos; não era um ritual litúrgico realizado no primeiro domingo de cada mês e sim uma celebração em família.
Há algo na comida que estimula o espírito fraternal e, sabendo disso, não poucas vezes Jesus ministrou enquanto compartilhava uma refeição com seus discípulos. Por isso, a Ceia, apesar de não ser uma refeição como qualquer outra (pois possui um significado espiritual), nos seus primórdios era tão literal a ponto de, até mesmo, ser confundida com um banquete qualquer (esse foi juntamente o problema que estava ocorrendo em Corinto, como veremos mais adiante).
1 Cor 11:23-28 é uma das passagens mais lidas em nossas igrejas na celebração da Ceia do Senhor. Poucos atentam, porém, para o fato de, em 1 Cor 11, Paulo usar a palavra grega δεῖπνον (deipnon) para se referir à Ceia. Δεῖπνον se refere à PRINCIPAL refeição do dia entre os gregos e romanos de seu tempo (normalmente no final da tarde ou no começo da noite).1 Ou seja, ao ensinar sobre a Ceia, Paulo tinha em mente um banquete que não somente era literal, mas era também SUBSTANCIAL.
A propósito, as admoestações de Paulo contra a comilança e embriaguez dos coríntios não fariam o menor sentido se os primeiros cristãos celebrassem a “ceia tradicional” com elementos simbólicos atualmente realizada em nossas Igrejas.

O problema de Corinto

O episódio em Corinto merece nossa atenção devido a má interpretação da proposta de Paulo para a solução dos problemas que estavam ocorrendo na celebração da Ceia naquela igreja.
Não poucos irmãos entre nós (até mesmo na Igreja nos lares) entendem as admoestações de Paulo aos corintios (para que os irmãos mais abastados “comessem em casa”) como um mandamento para que a Ceia fosse realizada como um evento distinto e separado do farto banquete que mais tarde seria conhecido entre os discípulos como “Festa Ágape” (Jd. 12). Mas esta é uma má interpretação das instruções do apóstolo.
Ao lermos 1 Cor 11:17-34 com atenção, entenderemos que os mais abastados estavam trazendo a comida e comendo a sua refeição individualmente, sem se preocuparem com os irmãos mais pobres da Igreja, envergonhando assim “os que nada têm” que normalmente chegavam de mãos vazias ao evento e acabavam ficavando sem comer (v. 22). As pessoas somente “enchiam a pança” sem se preocupar com os demais membros do Corpo, esquecendo-se de consagrar o pão e o vinho em conjunto com TODOS os membros do Corpo Local. A Ceia deixava então de ser a celebração do Corpo de Cristo para tornar-se uma mera comilança egoísta.
Paulo não mandou ninguém comer em casa porque pensava que a Ceia era algo “demasiadamente sagrado” para ser celebrada durante uma refeição normal. A repreensão de Paulo não se deu por eles estarem “profanando” a Ceia pela “falta de reverência” ao literalmente festejá-la com fartura de alimentos. Paulo repreendeu os corintios por estarem comendo fora do espírito da comunhão, pelas dissensões que havia na Igreja (v. 18) e porque cada um estava fazendo “a sua própria ceia” de maneira egoísta (v.21). A solução proposta por Paulo não foi uma “ceia simbólica”, e sim que “se você não consegue se controlar, coma em casa, aplaque essa sua ‘fome de leão’ e abençoe o mais pobre” para que todos possam participar JUNTOS da Ceia. O apóstolo é bem claro quanto a isso quando termina o capítulo dizendo que “quando vos ajuntais PARA COMER, esperai uns pelos outros” (v. 33).
É obvio, portanto, que Paulo não aboliu a prática de compartilhar uma refeição literal durante a Ceia do Senhor em Corinto, apenas corrigiu alguns excessos que estavam ocorrendo naquela Igreja.

Conclusão

A maioria de nós vem de uma tradição católica onde o batismo por aspersão é praticado. Algumas denominações protestantes nunca aboliram esta prática herdada do catolicismo, apesar do amplo entendimento de que o batismo por imersão reflete com mais fidelidade o batismo bíblico, tanto na questão morfológica da palavra (a palavra “batismo” vem do grego βάπτω – bapto - quer dizer literalmente “imergir”)2 quanto na prática da Igreja primitiva (que batizava por imersão). Assim como a ordenança do batismo, a Ceia do Senhor também sofreu uma mutação em seu formato original.
A Ceia foi originalmente instituída pelo Senhor Jesus em um contexto de refeição literal (Lucas 22: 15-20). O Senhor consagrou o pão e, somente depois de cear (v.20), consagrou o vinho e o tomou com seus discípulos. Ele abriu a Ceia com o pão, comeu o banquete da Páscoa3 e fechou o jantar ao levantar o cálice de vinho. Anos de tradição religiosa “enxugaram” a ordenança ao minimizar ao máximo a literalidade dos elementos que a compõem: o pão foi substituído por alguns farelos e a taça de vinho por suco de uva servido em copinhos de flúor.
Obviamente esta é uma questão secundária com relação à salvação e que, pela graça de Deus, não é o formato da ordenança e sim a fé de cada um que cumpre o seu propósito principal. Entretanto, tal princípio não invalida o valor desta discussão: é fato que a ceia simbólica que atualmente celebramos em nossas igrejas foi uma adaptação pós-bíblica da tradição apostólica. Uma análise bíblica e histórica imparcial na questão da Ceia nos levará a reconhecer que a ceia literal está para o batismo por imersão assim como a ceia tradicional está para o batismo por aspersão no tocante ao seu formato.
A Ceia do Senhor não se distingue de outras refeições no seu formato, somente em seu significado. O que distingue a Ceia como um ato profético não é um ritual solene em que experimentamos alguns “aperitivos sagrados”, mas o propósito pelo qual nos reunimos: não somente para “encher a pança” (como nos adverte Paulo), mas para, em alegria, relembrar a oferta vicária feita em nosso favor à medida que confraternizamos uns com os outros.
A cirúrgica separação entre a Ceia do Senhor e o banquete promovida pela tradição eclesiástica transforma a ordenança em um ritual totalmente estranho às Escrituras e à prática dos primeiros apóstolos, desprovido totalmente de seu contexto de celebração e fraternidade. Diante de tantas descrições bíblicas da Ceia como um banquete, enxergar Pedro, João, Paulo, Silas, Timóteo e os demais discípulos comungando em torno de uma mesa cheia de “aperitivos simbólicos” é mais do que uma idéia equivocada. É algo totalmente surreal.

Ceia do Senhor: festa ou funeral?

Como dito no artigo anterior, a Ceia foi estabelecida pelo Senhor Jesus e celebrada por seus discípulos em um contexto de refeição literal. A idéia de se observar a Ceia do Senhor tomando suco de uva em um dedal de costura e comer pedacinhos insípidos de bolacha é algo totalmente estranho às Escrituras e à prática dos primeiros discípulos.

Piquenique no cemitério

Por que o formato da Ceia é tão importante? Porque o formato determina o espírito em que ela é celebrada. Quase dois milênios de tradição eclesiástica transformaram a Ceia em um solene ritual, em contraste com a prática dos primeiros discípulos que, ao celebrar a Ceia, estavam simplesmente compartilhando um banquete.
O pão e o vinho deveriam ser consumidos em um ambiente de alegria e descontração, não de tristeza e formalismo. Mas nos moldes atuais, “celebrar” a Ceia é algo tão contraditório quanto fazer um piquenique no cemitério.
O sentimento de um evangélico ao participar da Ceia é o mesmo de um católico na sexta-feira da Paixão: contemplam as chagas de Cristo com um espírito de penitência e comiseração. A tradição eclesiástica nos ensina que, ao tomar a Ceia, devemos reviver os horrores da cruz e, com tristeza, VELAR o Corpo de Cristo simbolizado pelo pão e pelo vinho. É como se estivéssemos assistindo ao filme de Mel Gibson – “A Paixão de Cristo” – todas as vezes em que provamos a ceia.
Mas será que era isso o que o Senhor tinha em mente quando instituiu a Ceia? Seria a intenção do Senhor que sua Igreja realizasse um velório por mês em memória à sua Pessoa?

O espírito da Igreja Primitiva

Particularmente, entendo que Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro, mas posso dizer que a Ceia de Natal é o evento que mais se aproxima da Ceia do Senhor no tocante ao formato e ao espírito em que ela era celebrada pelos primeiros discípulos: a Ceia de Natal, para grande parte dos cristãos, é uma ocasião em que as pessoas se reúnem em torno de uma mesa (repleta de comida) para celebrar o Senhor Jesus Cristo em um espírito de alegria, simplicidade, informalidade e desprovido de religiosidade. Mais do que um banquete, trata-se de uma celebração em família com um propósito espiritual. Este foi o ambiente em que a Ceia era celebrada em seus primórdios.
Devemos lembrar que Jesus estabeleceu a Ceia durante a Pessach , ou Páscoa (Lucas 22:7). A Páscoa judaica é um festival em que os judeus recordam e comemoram a libertação dos hebreus da escravidão do Egito e a consequente formação da nação de Israel, conforme narrado no livro de Êxodo. Desnecessário dizer que, para um judeu, a Pessach é uma festa, não é um funeral. Para um judeu, o sangue do cordeiro é sinônimo de vida e não de morte. Foi pelo sangue derramado e espalhado nos umbrais de suas portas que o anjo da morte se desviou de suas casas enquanto trazia juízo à nação do Egito.
A Páscoa judaica ainda é celebrada entre os judeus como uma festa que simboliza um pacto. De igual maneira, a Ceia do Senhor deve ser uma festa que simboliza um pacto: pelo Sangue de Cristo fomos libertos da escravidão do pecado e não seremos julgados com o mundo. Por seu sangue somos feitos novas criaturas e novos cidadãos desta Pátria Espiritual, que é o Reino de Deus.
Por que então observamos a Ceia como se fosse um funeral, como se ao provar do cálice e comer o pão estivéssemos uma vez mais matando o Filho de Deus?

A Eucaristia Protestante

Influenciados pela prática pagã de se oferecer sacrifícios em seus dias, os cristãos ante-nicenos já no início do segundo século haviam desenvolvido a ideia de que todas as vezes em que a Eucaristia era observada, o Corpo de Cristo estava sendo novamente oferecido em oblação. Eles entendiam que, após a congragração por meio da oração, o pão e o vinho passavam por um processo místico de “mudança de matéria” (transubstanciação). A partir deste momento, eles já não eram simplesmente o pão e o vinho, e sim a “Eucaristia” (do grego Εuχαριστία, que quer dizer “ação de graças”). A Eucaristia era a presença literal e substancial do Corpo do Senhor Jesus no pão e no vinho.1 Esta crença fez com que o pão e o vinho adquirissem um aspecto sagrado em si mesmos, o que deu a luz a todo tipo de misticismo e superstição em torno da Ceia do Senhor. Este é o transfundo de toda a solenidade litúrgica que envolve a Eucaristia católica.
A Reforma Protestante aboliu a supersticiosa doutrina da transubstanciação, mas a penumbra e o espírito fúnebre que permeiam o subconsciente protestante, na ocasião da Ceia, remetem à idéia católica de reviver o sacrifício de Cristo cada vez que tomamos o vinho e comemos o pão.
Os protestantes brasileiros desdenham dos crucifixos católicos que trazem um Cristo morto no madeiro, alegando que a “cruz protestante” está vazia – simbolizando a ressurreição do Messias. Os evangélicos criticam os católicos por contemplarem as chagas de Cristo de forma exageradamente piedosa, penitente e fúnebre. Os evangélicos dizem que não adoram a um Cristo morto e ensangüentado na cruz, mas a um Cristo vitorioso que venceu a morte e que nos deu vida. Curiosamente, no momento da Ceia, toda a retórica protestante desvanece, dando lugar à mesma prática católica medieval de se contemplar as chagas de Cristo com lástima e penitência, sem o devido discernimento daquilo que estas chagas fizeram por nós: elas foram o castigo que nos trouxe a paz – Is 53:5.

Conclusão

A ceia simbólica atualmente realizada em nossas igrejas elimina totalmente o aspecto fraternal da ordenança, transformando aquilo que deveria ser uma celebração familiar em um ritual fúnebre e exageradamente solene. O pudor a uma festa com abundância de alimentos, onde as pessoas literalmente confraternizam à medida que celebram o Corpo de Cristo, parte do conceito católico de que tal ambiente de festa profanaria a “Eucaristia” pela falta de reverência.
Não há dúvidas de que a memória do sacrifício de Cristo a nosso favor deve causar em nós um quebrantamento. Mas devemos discernir entre o quebrantamento de um inconverso que é confrontado com as chagas de Cristo, e o quebrantamento de um discípulo que experimenta o poder do Pacto de sangue que Cristo firmou na cruz conosco. Se em nossa conversão o sacrifício de Cristo nos causa um quebrantamento acompanhado de culpa e tristeza (“Ele sofreu e morreu por mim”), no decorrer de nossa caminhada cristã a memória das chagas do Senhor deve causar em nós um quebrantamento acompanhado de júbilo (como a de um escravo que recebe sua carta de alforria, ou a de um devedor cuja dívida é perdoada), pois aquele que toma de seu sangue e come de seu corpo tem a Vida em si (Jo 6:48-58).
A Ceia do Senhor é um ato profético da Vida de Cristo sendo recebida e compartilhada por aqueles que participam deste banquete espiritual. É um ato profético que aponta também para as Bodas do Cordeiro (Apocalipse 19:7-10). A Ceia do Senhor é a nossa Pessach. Jesus é o nosso Cordeiro Pascal. Seu sangue nos cobriu e nos livrou da morte. Sendo assim, devemos celebrar seu sacrifício em um ambiente de festa, com alegria e gratidão, não em luto e comiseração.

Trapalhadas ante-nicenas: uma retrospectiva histórica da Ceia do Senhor


Tenho grande admiração pelos pais ante-nicenos. A fibra moral, a sinceridade e dedicação ao Senhor que encontramos nos registros históricos acerca destes homens são notórias. Alguns serviram ao Senhor até o ponto de martírio, e sem dúvida devemos muito a eles na preservação e na transmissão de vários aspectos de nossa fé.
Temos que reconhecer, no entanto, que igualmente devemos a eles algumas distorções de conceitos e práticas bíblicas que se propagaram na era ante-nicena e que, posteriormente, acabaram sendo transformadas em doutrina pelo catolicismo romano. As crendices ante-nicenas a respeito da Ceia do Senhor são, sem dúvida, um grande exemplo disso.
Como vimos anteriormente, já na segunda metade do século II encontramos registros de que os cristãos começaram a crer que o pão e o vinho, após serem consagrados por meio de oração, se transformavam literalmente no corpo e no sangue do Senhor Jesus1 por meio de um processo místico de transmutação (ou transubstanciação). A partir deste momento, o pão e o vinho não eram mais elementos comuns mas, de acordo com os pais ante-nicenos, eram a Eucaristia (que quer dizer “ação de graças”). Esse sem dúvida foi o fator que abriu caminho para que a Ceia deixasse de ser um banquete familiar para se tornar um ritual solene e litúrgico.  À medida que o misticismo em torno do pão e do vinho aumentava, a Ceia do Senhor diminuía de tamanho no intuito de evitar sua profanação.
Os elementos da Eucaristia adquiriam atributos sagrados em si mesmos e todo tipo de superstição e fanatismo se originava em torno da Ceia do Senhor. Tertuliano, por exemplo, dizia que se entristecia a ponto de “sentir dores” sempre que o vinho ou um pedaço de pão acidentalmente caiam no chão.2 Os elementos da Eucaristia se tornaram tão sagrados que seu depositário era tratado como se fosse literalmente a urna onde jazia o Corpo de Cristo.3Cipriano, por exemplo, nos conta de uma mulher que tentava tocar a caixa que continha “o sacramento da Eucaristia” com “mãos impuras”, quando foi impedida por labaredas de fogo que supostamente subiram da caixa.4 Não demorou muito para que a mesa que continha os elementos da Eucaristia fosse vista também como um objeto sagrado em si mesmo: no final do século II, “a mesa santa” ou “mesa bendita” já era reverenciada como uma espécie de altar.
Para o cristão ante-niceno, a Eucaristia era literalmente o meio pelo qual Cristo tinha comunhão com sua Igreja. Abster-se da Eucaristia era abster-se da comunhão e do Corpo de Cristo. Cipriano chamava o cálice de vinho de “o cálice da salvação”5 e expressa sua preocupação com aqueles que, por algum motivo, se abstinham de tomar a Eucaristia e se “separavam do Corpo do Senhor” a ponto de distanciar-se da salvação.6
A Eucaristia passou a ser vista também como um meio pelo qual compartilhamos da imortalidade de Cristo e uma espécie de vitamina espiritual.7 Cipriano nos relata que alguns cristãos bebiam o cálice do sangue do Senhor diariamente para serem fortalecidos e serem capazes de derramarem seu próprio sangue por Cristo.8
Influenciados pela cultura pagã de seu tempo, os cristãos ante-nicenos começaram a ver a Eucaristia como um sacrifício a ser continuamente oferecido pela Igreja. O Didaque, um dos documentos apóscrifos mais antigos da História da Igreja (80 d.C. – 140 d.C.), já descreve a Ceia como uma espécie de “sacrifício espiritual”, o que nos mostra que esta distorção já havia entrado na Igreja no início do século II.9 Por volta do ano 180 d.C., Irineu já ensinava que a Eucaristia era “a oblação do novo Pacto”, incenso oferecido a Deus pela Igreja em todo o mundo.10 Cipriano exorta os cristãos a rejeitarem os sacrifícios pagãos de seu tempo e tomarem o Corpo do Senhor em sacrifício.11
Um sacrifício só pode ser oferecido por um sacerdote. Surge então a idéia de que os elementos da Eucaristia deveriam ser consagrados pelo “presidente da congregação” primeiro, e só depois distribuídos pelos diáconos aos demais membros do Corpo de Cristo.12

Conclusão

Em meio ao fanatismo medieval em torno da “Eucaristia”, a Reforma Protestante nos recordou que Cristo foi sacrificado uma só vez pelos pecados da humanidade e que, portanto, a Ceia do Senhor não é uma “oblação” (Hebreus 9:26). Muitos protestantes, porém, apesar de não confessarem a transubstanciação doutrinariamente, na prática ainda perpetuam certas práticas que derivam do conceito.
Na maioria das igrejas hoje, a “Santa Ceia” é vista como um sacramento que obrigatoriamente necessita ser ministrado por um “sacerdote” – um clérigo profissional – para ser validada. Séculos de tradição eclesiológica acumulada transformaram a Ceia em um ritual tão sagrado que, na mente das pessoas, tomá-la pode ser algo perigoso.13 Celebrá-la como os primeiros discípulos nos dias atuais (em um banquete literal), equivale a profanar a “bendita mesa” e cometer um “sacrilégio”.
A Ceia do Senhor foi concebida como uma simples refeição entre discípulos. Era era um banquete que simbolizava uma aliança. É uma profecia encenada, um ato profético composto por elementos comuns que apontam para uma realidade espiritual, mas que não são a realidade espiritual em si mesmos. O aspecto místico da Ceia não está no pão e no vinho literalmente, mas na profecia que eles proclamam – tanto quanto a água do batismo que não limpa pecados, mas de maneira tangível aponta para uma realidade espiritual.
A Ceia não é um banquete como qualquer outro, por causa daquilo que representa, mas para nos aprofundarmos na revelação embutida nesta ordenança, devemos nos desfazer de todo o misticismo e superstição que herdamos de “Mãe Roma” e começar a vê-la novamente como um evento comunal, assim como faziam os primeiros discípulos.
Assim como a Bíblia no século XVI, o pão e o vinho necessitam sair das mãos do clero e ser “desembrulhados” de toda a roupagem mística e supersticiosa que a tradição eclesiástica lhes agregou, voltando a ser manuseados com intimidade pelas pessoas, sem medo, sem superstições, em um espírito de alegria e gratidão.

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